Autor: Anne M. Lucille e Ester Cartago[1]
Publicado: 02 de Setembro de 2024
Sim, nós somos os agentes contaminadores de sua psique, uma vez que ela, psicologicamente falando, nos primeiros anos de vida, ainda não tem uma personalidade pontuada pelos costumes sociais. Sua mente está vazia. Ali não existem memórias, nenhum repertório enumerando suas experiências de vida, e sem isso, ela não é capaz de pensar, ao menos de maneira lógica, analógica e consciente, a exemplo de nós os adultos.
No entanto, logo essa mente vazia será preenchida com os caracteres que consideramos mais preciosos em nossa personalidade, tais como, vaidades, crendices, crenças, ideologias, superstições, medos, paranóias, fanatismo, assim como os desejos e preferências mais bizarras. Isso ocorre porque somos uma maioria cuja convicção é de que temos o dever ou a missão divina de reconfigurar o mundo de acordo com nossos gostos, caprichos e opiniões.
Imagine se existisse uma maneira de tornar nossa vida mais fácil, confortável, especialmente se, para isso, esforço algum de nossa parte fosse necessário. Seria o tipo de benefício que, além de muito vantajoso, deveria ser incorporado ao nosso patrimônio ou status pessoal como uma espécie de doação espontânea.
Se pudéssemos com poucas palavras traçar o perfil íntimo de um corrupto, o que teríamos pela frente? Trata-se daquele sujeito que já sai de casa na expectativa de trazer da rua um pacote sempre crescente de vantagens. Um homem alheio a ética e um fiel partidário da lei do menor esforço. Um indivíduo que está sempre disposto a mentir e explorar os incautos sem nenhum pudor, se o propósito for atingir suas metas de autorrealização.
Quando uma criança é tratada como mimos exagerados, presentes e todo um aparato de agrados para que cumpra com seus deveres primários, ela está diante das mesmas condições que também motivam um corrupto. São compensações para escovar os dentes, ir à escola, ir dormir cedo, pentear o cabelo. Então, que tipo de mensagem estamos inserindo na personalidade desse pequeno?
E há toda uma cultura instituída de que criança precisa de agrados exagerados e de que em seu mundo tudo deve ser permitido. E isso inclui as birras, os erros, mesmo os intencionais, até como forma de evitar que sofra constrangimentos ou Traumas Emocionais, caso seja repreendida. É crença de que tais intervenções poderão se transformar em feridas psicológicas sérias.
No entanto, permitir que absorva sem ressalvas todo conteúdo midiático disponível, onde estão incluídas bizarrices, violência sem limite, costumes nosográficos e capazes de abalar até mesmo um adulto, paradoxalmente, isso é permitido, apoiado por cientistas educacionais, aceito socialmente como uma pedagogia adequada.
Desse modo, alertar para um erro que eventualmente venha a cometer é considerado um gesto capaz de lhe causar traumas. Mas, assistir novelas e programas com tramas espúrias, de uma realidade absurda, onde se cultua a degradação moral e social, isso é considerado edificante, e até debatido em círculos de pais e professores como exemplificação saudável de novos e necessários comportamentos.
Onde está a falha? E se a falha está em nosso modo acrítico de enxergar esse problema? De aceitar essa manipulação midiática com transigência, a exemplo de fanáticos religiosos que se recusam a pensar e se deixam conduzir por gurus inescrupulosos para o abismo, crentes de que do outro lado das trevas existe um paraíso construído especialmente para atender suas carências mais sórdidas?
De fato, essa mentalidade meritória não lembra o processo dos mimos? Isto é, aceitamos o mundo com suas deformações e absurdos, mas em troca de nossa indiferença, concordância, apoio e incompreensível obediência, há um paraíso em algum ponto atemporal a espera dos resignados e consonantes.
Mas, paradoxalmente, não se percebe um aumento proporcional na cordialidade e respeito entre os indivíduos, e há cada vez mais antagonismos, relacionamentos em crise, o fim do sentido real de confraternização, e se acentuam os conflitos. Fica evidente que há uma falha grave em nosso modo de tratar tudo isso.
Então, para uma criança, cuja mente ainda precisa de lastro e experiência de vida para se tornar capaz de discernir sobre a complexidade do viver, o que significa ganhar presentes, mesmo que seja como uma espécie de abono ou incentivo para que cumpra com seus deveres mais óbvios?
Trata-se de um modo institucionalizado de convencê-la, muitas vezes, a cumprir algo contra sua vontade. Convencer é o mesmo que forçar, obrigar. Logo, fazer algo contra sua vontade só é possível por meio de compensações ou agrados vantajosos, o mesmo incentivo que também motiva um corrupto.
Direitos e deveres, desde os primeiros anos de vida, deveria ser a primeira disciplina em qualquer processo cognitivo. Na vida real, dentro das sociedades organizadas, os parasitas são aberrações que causam desequilíbrio e representam uma ameaça concreta à harmonia entre indivíduos. Assim, ensinar a criança desde cedo sobre tais coisas é dever dos pais, já que nesse quesito não podemos contar com as escolas.
Em um mundo verdadeiramente civilizado e justo as pessoas se ajudam mutuamente. Compreender essa regra básica é o primeiro passo para a Autodisciplina. Disciplinada, a criança não precisará de agrados extras para cumprir com suas obrigações, e assim estará livre da sombra da corrupção, seja da parte dos pais ou de qualquer outro que usa mimos e presentes como isca para exercer controle sobre alguém.
E a consequência é óbvia. As crianças logo ficarão viciadas e dependentes de mimos e compensações. E toda sociedade patológica incentiva a prática. E há as datas festivas, e eventos de toda natureza, que reforçam e consolidam o hábito. Viciadas em receber para dar alguma coisa, o que podemos esperar das sociedades futuras? Qual será o caminho natural de alguém já corrompido, senão repassar aquilo que aprendeu e pratica de maneira natural para seus sucessores?
Se o mimo e o carinho genuíno, aquele em forma de afeto, desde que seja coisa gratuita, é para nós um modo correto de se educar, as compensações corruptoras não o são. A regra é simples: quando esse mimo se transforma em pagamento, torna-se para as crianças uma fonte de acomodação e dependência patológica.
Devemos nos lembrar de que, naquela mente ainda em formação, não existe nenhum conceito de regras sociais, nem a ideia do Errado ou Certo. Aquela pequena psique, ainda sem nada escrito em seu roteiro existencial, por instinto, a exemplo dos animais irracionais, já sabe o que é satisfação. Satisfação significa que aquilo é bom, sendo, portanto, supostamente necessário à sua sobrevivência.
E a regra de sobrevivência do animal bruto, irracional, está centrada no seguinte preceito: se não favorece deve ser evitado, mas se ao contrário favorece, deve ser aceito, cultivado e repetido. Mas, a criança racional ainda não sabe o que é ética, nem comportamento incorreto ou correto, muito menos conhece os malefícios dos vícios e manias, uma pauta que nós já conhecemos de longa data.
No entanto, criamos algo novo, um tipo de autocorrupção próprio do conhecido processo de troca, o “dar para receber”. Trata-se do nosso modo de vida, cujo eixo está centrado nessa pratica. “É dando que se recebe”. É um mandamento dos livros sagrados, um preceito existencial. E assim, até para sorrir a criança passará a receber compensações. Doravante, nenhuma ação praticada em sua vida terá mais uma conotação espontânea, gratuita.
Nós lhe ensinamos tudo isso, ela não nasceu com esse repertório cognitivo. Depois, já crescida, quando se torna egoísta, competitiva e disposta a destruir seu semelhante na simples defesa de um ponto de vista, como moscas desorientadas, ficamos a nos perguntar, “Onde será que falhamos?”
Falhamos em tudo, por ignorância e omissão. E tudo começou quando inserimos em sua mente a ordem expressa de que toda ação praticada exige uma contrapartida. É regra básica em todas as sociedades: “É dando que se recebe”. Está lá, em nosso manual básico de vida na terra. Poderá existir compaixão e respeito onde existe o desejo de compensação por alguma ação praticada?
Alguns defendem que não é possível educar sem mimos e agrados materiais, como se de fato isso significasse educação. De verdade, não precisamos corromper a mente de nossas crianças com sistemas cada vez mais elaborados de coesão e indução, ou com promessas que jamais poderão ser cumpridas, tirando delas, sua capacidade de se expressar com naturalidade, espontaneidade e liberdade.
A criança não precisa ser corrompida para cumprir com suas obrigações. Precisa sim, de esclarecimento e instrução para se Autodisciplinar sem se corromper. Isso se faz simplesmente não a subornando com os fáceis agrados de toda vida. Entretanto, depois de crescida, já consciente das coisas, não haverá má fé se a presentearmos, neste caso, sem motivos ou ocasiões especiais ao fundo, sem cobrança de coisa alguma, sem que o gesto esteja vinculado a ideia de mérito ou gratidão.
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[1]Anne Marie Lucille - annemarielucille@yahoo.com.br
Antropóloga e Pesquisadora na área da Psicopedagogia. Atua como consultora educacional especializada em Educação Integral e Consciencial.
Ester Cartago - estercartago@gmail.com
É Psico-orientadora especializada em educação Integral e Consciencial, Antropóloga, pesquisadora de Fobias Sociais e também escritora. Torna-se agora mais uma colaboradora fixa do nosso site.
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