Autor: Anne M. Lucille e Ester Cartago[1]
Publicado: 02 de Agosto de 2024
Desse modo, antes de tudo, o espaço público se torna uma espécie de passarela ou vitrine onde todos podem se exibir na tentativa de mostrar aquilo que aparentam ser. E assim, uma simples caminhada em lugares frequentados por muitos se transforma numa oportunidade para a autopromoção, exaltação à força presencial e importância social. E cada um se esforça para parecer distinto, virtuoso, capaz de se diferenciar ou destacar-se em meio à multidão.
E uma coisa aparentemente simples como ir às compras, acaba por se tornar uma competição silenciosa, uma vez que, de algum modo, intimamente, estaremos disputando uns contra os outros, maior distinção e a consequente preferência pela atenção do resto da platéia. E embora não possamos prescindir das relações em nosso viver, logo transformaremos este fato num enorme problema.
Como entidades racionais que somos, seria possível perceber que quase tudo em nossas vidas ou relacionamentos gira em torno de um modelo competitivo; uma eterna condição centrada na feroz disputa por alguma coisa?
Talvez tenha se tornado um hábito tão natural que a maioria nunca terá olhos tão aguçados para ter consciência disso. Afinal de contas, somos instruídos assim nas escolas, em casa, no templo religioso, no trabalho, nos esportes, no lazer, e por meio de livros e filmes. Trata-se do status padrão adotado como guia em nosso atual modelo civilizatório. Afinal de contas, existirá alguma ação de nossa parte que não seja motivada por alguma proposta de ganho?
A única intenção por trás do ganho é a coroação de um mérito, uma evidência concreta da conquista de uma vantagem ou a certeza de que chegamos à frente de alguém. E um fato concreto, impossível de ser refutado, é que não existe o sentimento de sucesso pessoal sem a sombra do insucesso de outro a nos servir de referência.
O significado ou objetivo da vida, decerto é aquele que damos a ela, uma vez que a natureza não concedeu a ninguém, de maneira explícita, uma cartilha com estas recomendações, proposições, gabaritos, atribuições ou protocolos formais.
É um modelo no qual cada espaço deve ser conquistado, e aquilo que já possuímos deve a todo custo ser preservado. Nesse modo de vida idealizado por nossos ancestrais, a felicidade é um objeto com forma, simbolismo e conteúdo, capaz de ser comprada ou tomada à força de quem supostamente já a possui.
Impossível se torna pensar em igualdade entre os povos se nós, de livre arbítrio, cultuamos o nacionalismo, as ideologias, a exaltação à etnia, a hierarquia do status social, a própria erudição, e assim por diante? Como podemos idealizar a liberdade entre credos se há uma segmentação criada por cada ordem sectária com o objetivo da autopromoção e consequente desconstrução das demais concorrentes?
Não é de estranhar quando verdadeiras batalhas entre os líderes e filósofos sociais são travadas para reivindicar a propriedade de alguma tradição milenar, cuja intenção é promover a superioridade de uma etnia, ideologia ou credo. Fazemos questão de sublimar nossa raça, culinária, indumentária, estilo de vida, ícones pessoais, rituais e cultos escolhidos como símbolos capazes de afirmar nossa origem e identidade cultural, deixando claro que estamos em luta silenciosa, ou aberta, contra outros grupos sociais, étnicos, sectários ou ideológicos diferentes do nosso.
E o mundo se transforma uma grande arena ou praça de guerra, onde a competição se torna a regra. Estamos em disputa contra todos, até mesmo contra aqueles que residem dentro de nossa casa.
Filosoficamente é fácil dissertar sobre a miséria, desencontros e anomalias da humanidade, mas, em casa, ainda somos contraditórios, e na maioria das vezes, insensatos. Criamos filhos dentro de um ambiente competitivo, onde marido e mulher disputam, cada um ao seu modo, seu próprio e indivisível espaço. E naquele ambiente onde deveria existir ressonância e equilíbrio, irmãos disputam entre si a preferência dos pais, assim como uma distinção pessoal capaz de colocá-los um degrau acima dos outros.
E quando saímos a criticar o crescente nível de indiferença que existe entre as pessoas, da falta de respeito em relação ao espaço de cada um, ignoramos nosso ativo papel na instauração e continuidade desse estado de coisas.
Em nosso trabalho há uma exigência não explícita de que precisamos ser os melhores. O mesmo ocorre ostensivamente em nossas relações, e de maneira bizarra, até nas desgraças pessoais. Ensinamos aos nossos filhos que deverão lutar pelos seus objetivos, mas, raramente, orientamos sobre ética, respeito, sensatez e honestidade.
Instigamos a competição e ignoramos a tolerância como forma de convívio. Ao obrigar que nossos filhos sigam profissões que nos agradam, raramente levamos em conta suas Vocações e verdadeiras predisposições. Os jovens precisam de orientação, não ações mandatórias forçadas. Impor é tirar a liberdade, e sem liberdade para ir e vir, o respeito entre indivíduos torna-se impossível.
Ao assumir a postura da individualidade não compartilhada, cada sujeito está a criar em torno de si mesmo uma blindagem, que inevitavelmente irá separá-lo dos demais. Poderão conviver entre si, mas sem abrir mão dos seus interesses pessoais, independente dos efeitos em relação aos outros. Nasce assim o homem egocêntrico, que enxerga todos os demais como coadjuvantes ou meios secundários, embora necessários, para que seja capaz de atingir seus objetivos.
Ao se constituir o núcleo familiar, pais e filhos, como grupo social, tendem a se isolar das outras famílias. Compreender porque fazemos questão de nos isolar uns dos outros constituindo guetos familiares, tanto em ideologias quanto em preferências, opiniões ou hábitos da tradição, nos facultaria à descoberta da maioria das causas dos conflitos humanos.
Tal postura é um decreto de que a “verdade” e o bom senso estão sempre do nosso lado, sob nossa exclusiva jurisdição. Estamos a instituir a falta de respeito e a intolerância como um caminho necessário para se chegar ao sucesso, que no fim das contas, por maior e mais próspero que aparentemente seja, será sempre temporário.
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[1]Anne Marie Lucille - annemarielucille@yahoo.com.br
Antropóloga e Pesquisadora na área da Psicopedagogia. Atua como consultora educacional especializada em Educação Integral e Consciencial.
Ester Cartago - estercartago@gmail.com
É Psico-orientadora especializada em educação Integral e Consciencial, Antropóloga, pesquisadora de Fobias Sociais e também escritora. Torna-se agora mais uma colaboradora fixa do nosso site.
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